Berinjela



Um desespero calculado. Eu olhava para a berinjela e lembrava do tempo de escola, quando não sentia rancor das coisas justamente por não ter um passado tão negro como o meu. Sabia que ao colocar meus dentes naquela coisa meus pecados seriam pagos da forma mais cruel e negra possível. Assim como uma nuvem espessa meus olhos miravam aquelas lembranças cruéis de recreios escolares com merendas mofadas e quentes, onde eu sentira minha língua aguçar os mais apurados sentidos de nojo e repulsa ao ter mastigado, aos sete anos de idade, um sanduíche de atum com pedaços picados de berinjela ressecada, erroneamente entregue a mim naquela cinza tarde de outono.

Uma mesa de um hospital psiquiátrico. Um copo de água mineral e ela, lá estava ela, no centro da mesa, a berinjela. Meus familiares se juntavam ao redor da mesa com seus braços cruzados e olhares de decepção. Meu pai, com seu olhar maligno, me atirava raios de ódio, afinal, foram quinze caríssimos anos de terapia intensiva para descobrir que a origem da minha síndrome de pânico estava naquele sanduíche "inofensivo", como gostavam de o chamar os mal-nutridos de compreensão.

Os vinte e um médicos da terapia forçaram a cura da maneira mais cruel e insensata, é claro, confrontar-me com meu algoz, a dona berinjela. Até eles sentiam ódio de mim, me chamavam de fresco, não se importavam com o fato de eu estar a três metros deles. Viados.

Já se passavam vinte e sete minutos e a berinjela continuava intacta. Minha síndrome havia me tirado a vida, mas me proporcionou uma criatividade imensa. Imaginava a berinjela pegando sol na praia, esquiando na neve, enfim, qualquer imaginação que me proporcionasse o passaporte de fuga daquele cenário de horror. Sabia que aquele tempo havia sido fornecido a mim como momento de concentração para a derradeira mordida, mas era muito silêncio para tal, e já não tinha mais a auto-consciência necessária para a concretização do motivo formal ali celebrado.

Foi quando um terapeuta me aplicou um choque nas costas com aquela vareta elétrica, e quase sussurrando, me ameaçou com palavras hostis:

- Come logo, porra.

Foi quando percebi que não havia saída, talvez aquela mordida me livrasse da prisão de quinze anos do meu quarto, talvez não, de repente essa curiosidade me deu a fome necessária para a mordida. A descoberta de um novo mundo. Lá fui eu, respirei fundo, fechei os olhos, abri minha boca, estendi meu braço ao alcance da berinjela e a trouxe até o meu rosto. Franzi os olhos (uma lágrima caiu), cerrei os dentes e senti um pedaço de horror alcançar minha língua, para desespero de todos os meus sentidos. Sim, eu estava mastigando uma berinjela...

(Flashback)

Eu, sentado no parquinho da escola, ao dar a primeira mordida no fatídico sanduíche. Um berro de dor. Um vômito pastoso. Uma convulsão. Acordei. Corri com os olhos arregalados até o portão da escola sob o olhar de todas as outras crianças, que riam, riam e riam com os seus dedos indicadores apontando em minha direção.

Foi quando o riso daquelas crianças se confundiu com o riso de todos os meus familiares e médicos ao redor da mesa. Mas que filhos da puta. Era isso, era o riso das pessoas que me cegava a vontade de levar uma vida social. Era uma adaga no peito de vergonha.

O coração acelerou, o sangue saiu-me das veias.

Desmaiei.

Acordei meses mais tarde em um hospital no centro de Belfast. Olhei-me no espelho, vestia roupas verdes, minhas sobrancelhas e cabelo pintados de vermelho. Vivi o resto de meus seis anos de vida como um senhor anti-social irlandês viciado em whisky, até morrer de câncer no fígado.

Nunca mais voltaria a comer uma berinjela. Por recomendação médica.

Eu tinha forte rejeição alérgica àquela fruta.

Médicos filhos da puta negligentes. Confundiram uma simples alergia com motivos psiquiátricos. Eu não sou louco.

Louco é quem come berinjela.

Comentários

Anônimo disse…
Lindo! Maravilhoso! Quero dar pra você!
Anônimo disse…
Nossa... Que isso...

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